O que significa “depressão de alto funcionamento”?

 

Depois que a Miss EUA 2019 Cheslie Kryst foi encontrada morta nos Estados Unidos no fim de janeiro, uma frase dominou a conversa nas mídias sociais e nas notícias porlá: “depressão de alto funcionamento”.

Em uma declaração ao Extra, uma agência de notícias de entretenimento onde Kryst era correspondente, sua mãe, April Simpkins, disse que a jovem de 30 anos “estava lidando com uma depressão de alto funcionamento que ela escondia de todos – incluindo eu, sua confidente mais próxima – até pouco tempo antes de sua morte.”

A “depressão de alto funcionamento” não é um diagnóstico clínico encontrado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), um manual usado por profissionais de saúde. É um termo coloquial que cresceu em popularidade nos últimos anos, embora alguns especialistas tenham opiniões contraditórias sobre seu uso.

A frase destaca “um ponto realmente importante de que as pessoas podem estar sofrendo com doenças mentais e ainda parecerem capazes de funcionar ou não parecerem doentes mentais para um observador externo”, disse Rebecca Brendel, presidente eleita da Associação Americana de Psiquiatria.

Mas, disse Brendel, o termo pode exacerbar a vergonha e o mal-entendido sobre saúde mental e depressão. “Dizer que alguém é altamente funcional, embora tenha uma doença mental por si só, aumenta o estigma associado à doença mental.”

O The Washington Post conversou com especialistas em saúde mental para descobrir o que eles pensam sobre essa frase cada vez mais comum.

O que é “depressão de alto funcionamento” e por que o termo pode ser útil?

Em termos gerais, “depressão de alto funcionamento” é um termo não médico que pode ser usado para descrever certas pessoas que atendem aos critérios para um diagnóstico clínico de depressão, mas conseguem funcionar no dia-a-dia de uma maneira que sua condição mental provavelmente não é tão aparente para os outros ou até para eles mesmos, disse Jameca Woody Cooper, psicóloga e professora adjunta da Webster University, no Missouri, Estados Unidos.

Embora o “alto funcionamento” possa ser associado a indivíduos ou figuras públicas “de alto poder”, esse nem sempre é o caso, disse Jameca.

“Pode ser um professor, pode ser uma pessoa que trabalha em uma creche, pode ser um trabalhador de fast-food”, disse ela. “Todo mundo de todas as esferas da vida pode experimentar uma depressão maior, e todos de todas as esferas da vida podem parecer ou se apresentar como uma pessoa com depressão de alto funcionamento”.

A depressão clínica é diagnosticada ao longo de um espectro que leva em consideração a capacidade de uma pessoa funcionar. Mas a frase “depressão de alto funcionamento” pode ser esclarecedora para aqueles com e sem depressão.

As pessoas costumam “carregar essa imagem de indivíduos que choram, que estão presos na cama, que são suicidas”, disse Jameca. “Quando, na verdade, parece totalmente diferente em pessoas que estão ‘funcionando’ todos os dias.”

Montrella Cowan, terapeuta, palestrante e autora, concordou. Compreender a “depressão de alto funcionamento” pode ajudar a aumentar a conscientização pública de que é possível que uma pessoa “seja produtiva, ganhe seis dígitos, tenha a maior casa, um bom carro e fique deprimida”, disse ela.

Também pode ajudar alguém a saber que não está sozinho, disse Montrella, porque “muitas vezes as pessoas não estão se sentindo como elas mesmas e simplesmente não conseguem colocar o dedo nisso, e sofrem em silêncio. Mas agora é como, ‘Oh, alto funcionamento. Ok, então não é de admirar que eu me levante e vá trabalhar.’”

Quais são algumas preocupações sobre o termo?

O termo pode reforçar a vergonha que a pessoa tem de ter depressão, disse Natalie Dattilo, psicóloga clínica do Brigham and Women’s Hospital em Boston. “O estigma é a razão pela qual usamos esse termo para qualificá-lo, [como se] fosse tão chocante que pessoas bem-sucedidas pudessem ter depressão.” Mas, ela acrescentou, “não deveria ser tão chocante que as pessoas tenham depressão. Isso deveria ser apenas um fato, como as pessoas podem ter outras doenças médicas.”

Outra preocupação, disse Jameca, é que o uso do termo “alto funcionamento” pode ser interpretado incorretamente como uma forma menos grave de depressão.

“Depressão é depressão”, disse ela. “Só porque algumas pessoas têm traços de personalidade que as tornam mais capazes de funcionar, não deveria torná-las menos propensas a serem levadas a sério, e temo que é isso que pode acontecer se começarmos a realmente ver esse termo ‘depressão de alto funcionamento’ sendo usado ainda mais.”

Além disso, usar “alto funcionamento” como descritor pode ser enganoso, disse Matthew Rudorfer, chefe do programa do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), porque não leva em consideração o esforço necessário para funcionar.

“Se todos os carros em uma determinada avenida estão dirigindo a 50 km/h, mas um motorista tem que pisar no acelerador para manter isso, para o observador de fora tudo parece bem”, disse ele. “Mas eles estão se esforçando demais. Não deve ser necessário pisar no pedal para ir a 50 quilômetros por hora.”

Devemos usar a frase “depressão de alto funcionamento”?

Especialistas têm opiniões divergentes sobre se “depressão de alto funcionamento” deve ser um termo de saúde mental amplamente utilizado ou se tornar um diagnóstico oficial.

“A melhor coisa que podemos fazer é nos afastar completamente dos rótulos”, disse Rebecca, porque eles podem “realmente atrapalhar a compreensão do que está acontecendo com a doença mental”. Em vez disso, ela encorajou conversas abertas “sobre os sintomas de sofrimento mental” e reduzir o estigma e outras barreiras para obter cuidados.

Montrella, no entanto, disse que os benefícios de usar a frase “depressão de alto funcionamento” podem superar as possíveis desvantagens e observou que ela acredita que o termo deve ser incluído na próxima atualização do DSM. (Até o momento, nenhuma proposta foi apresentada para incluir “depressão de alto funcionamento” no DSM, de acordo com a American Psychiatric Association.)

“Estamos tentando normalizar a conversa”, disse Montrella. “Se começarmos a dizer: ‘Você não pode usar esse termo, você não pode usar esse termo’, agora não teremos muito o que falar.”

Embora esteja preocupada com isso, Natalie disse que concorda com o termo se puder permitir que alguém obtenha ajuda. “Se isso é o que permite que eles olhem e digam: ‘Ah, talvez seja isso que eu tenho’, então vamos em frente e usá-lo e continuar a trabalhar em direção a algo melhor.”

Quem está em risco?

É importante, dizem os especialistas, reconhecer quem pode estar em risco de sofrer esse tipo de depressão.

Jameca disse que muitas vezes vê isso em pessoas com “personalidades Tipo A”. Outras características podem incluir ocupar uma posição importante, lutar contra o perfeccionismo, agradar as pessoas ou querer ser visto como forte e capaz, disse Natalie.

“Nenhuma dessas são qualidades ruins, mas também podem influenciar o sistema de crenças de uma pessoa sobre si mesma”, disse Natalie. Tudo isso “pode contribuir para a pressão para ter um desempenho e ser de uma certa maneira e ter certas coisas”.

Jameca e Montrella também observaram que a “depressão de alto funcionamento” é frequentemente observada em comunidades de pessoas pretas, onde as barreiras para obter tratamento podem ser maiores devido ao custo, disponibilidade e estigma cultural. “Ainda estamos tentando combater esse estigma de ‘você é fraco'”, disse Montrella. “Como se fôssemos fracos se pedirmos ajuda – e isso não é verdade.”

As barreiras para procurar ajuda podem ser maiores para as mulheres negras, acrescentou Jameca. “Elas têm esse tipo de imagem de super mulheres, que podem fazer tudo, mas não sentir nada”, disse ela.

Quais são alguns sinais de depressão de alto funcionamento?

Pode ser difícil identificar sinais de depressão em pessoas que podem não reconhecê-la em si mesmas ou que podem estar mascarando ativamente seus sintomas e avançando, talvez porque parecer forte e capaz seja parte integrante de sua identidade, disseram especialistas.

Rebecca disse que as pessoas que estão preocupadas com uma possível depressão em si mesmas ou nos outros devem observar mudanças sutis, incluindo mudanças na energia, humor e qualidade do sono. Essas mudanças podem ser apenas um sinal de que alguém precisa redefinir e priorizar cuidar de si mesmo, disse ela. Mas, observou, se persistirem por um período maior do que duas semanas, pode ser um sinal para procurar ajuda profissional. Outros sinais potencialmente preocupantes são pensamentos de descrença sobre o futuro, bem como sentimentos de desesperança e impotência.

Se você está tentando ajudar outra pessoa, evite fazer suposições. Por exemplo, não diga a uma pessoa que ela precisa de terapia, disse Montrella.

Jameca sugere fazer perguntas primeiro e enquadrar potencialmente as mudanças de comportamento como coisas que você notou. Por exemplo, você poderia dizer: “Percebi que quando saímos com o grupo ultimamente, você não tem falado tanto”, disse ela, e continue com perguntas como: “Está tudo bem? Tem alguma coisa que você queira falar?”

Os especialistas recomendam ter um contato para um encaminhamento para um profissional de saúde mental pronto. Também pode ajudar se você puder compartilhar experiências pessoais de busca de apoio à saúde mental.

“Admitir ou reconhecer que você está lutando e que precisa de ajuda não é uma coisa fácil de fazer”, disse Dattilo. É por isso que esses profissionais acreditam que uma das conclusões mais importantes das discussões sobre “depressão de alto funcionamento” é a necessidade de conversar, de educar e falar sobre depressão e saúde mental para que o estigma continue a mudar.

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Tradução e adaptação: Equipe da Crônicos do Dia a Dia (CDD) 

Fonte: The Washington Post

The Washington Post, escrito por Allyson Chiu, em 17 de fevereiro de 2022.

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