Fake news e ‘hesitação vacinal’ atrapalham imunização infantil no Brasil e no mundo

Em entrevista à CDD, infectologista Cristiana Toscano, professora e pesquisadora da UFG, faz análise sobre situação atual e desafios da imunização infantil; confira 

Os dados de cobertura vacinal em todo o mundo revelam que 22 milhões de crianças não completaram o esquema básico de imunização no ano passado. De acordo com a médica infectologista e epidemiologista Cristiana Toscano, das diversas causas de mortes por doenças preveníveis, 1,7 milhão delas foram dos pequenos com menos de cinco anos de idade.

“As coberturas estão caindo não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Aqui, diferente de outros tempos em que o País era um exemplo, que tinha coberturas vacinais altas e grande contingente da população protegido, hoje temos ‘bolsões’ de não imunizados com número muito grande de crianças em risco para diversas doenças que são prevenidas por vacinas. O Brasil está entre os 10 países com maior número absoluto de crianças não vacinadas contra sarampo e sem receber as 3 doses necessárias da vacina pentavalente (difteria, tétano, Haemophilus Influenzae tipo B, hepatite B e coqueluche), que é uma vacina que usamos como um marcador de cobertura para as crianças da primeira infância. Então, a gente está em uma situação bastante delicada”, afirma a professora e pesquisadora da Universidade Federal de Goiás (UFG).

A especialista, que trabalha há mais de 20 anos com imunização e doenças preveníveis com vacinação, ressalta que as fake news atrapalham e confundem a população, impactando e agravando a situação. Ela também chama atenção para o termo ‘hesitação vacinal’- um conjunto de fatores que vão desde a confiança nos imunizantes, passando por questionamentos sobre o risco efetivo das doenças até a acessibilidade aos serviços de saúde.

É preciso envolver a sociedade, os meios de comunicação, os pesquisadores, os profissionais, o Programa Nacional de Imunização (PNI), os Estados e Municípios para lançar mão de estratégias para aumentar o engajamento, esclarecer dúvidas frequentes, orientar quando e quais vacinas devem ser administradas e sua importância para proteger nossas crianças.

Para saber mais sobre o assunto, a reportagem da CDD entrevistou a infectologista Cristiana Toscano, que também é integrante de comitês técnicos de assessoramento de programas de imunização no Brasil, nas Américas e na Organização Mundial da Saúde (OMS). Confira:

Qual é a importância da vacinação infantil?

Cristiana: As vacinas são as tecnologias de saúde de maior impacto na melhoria da saúde da população depois do saneamento básico. Atualmente, a cada ano aproximadamente quatro milhões de mortes são evitadas no mundo em função da vacinação. Nas últimas décadas, têm sido desenvolvidas vacinas para várias doenças infecciosas e, com isso, a gente consegue não só prevenir a doença,  mas também complicações, sequelas e mortes resultantes delas. Ao mesmo tempo, existe um impacto secundário na sociedade. Vários estudos apontam que a vacinação é responsável por melhor desempenho educacional e maior renda, com impacto no desenvolvimento econômico da sociedade e redução da inequidade social. Então, temos benefícios individuais e coletivos, na saúde e também em outras esferas. Isso é muito importante.

Como avalia a diminuição do engajamento dos pais na imunização dos filhos?

Cristiana: Um desafio que a gente enfrenta hoje em dia é a ‘hesitação vacinal’. É um termo definido mais recentemente que é caracterizado pelo atraso na aceitação ou recusa às vacinas, embora estas estejam disponíveis. Então, não é que falta vacina, mas existe dúvida sobre se deve se vacinar, atraso na vacinação, questionamento sobre a efetividade e segurança das vacinas. A hesitação é uma situação esperada e que pode ser esclarecida com informação de qualidade e orientação fundamentada em ciência. Facilidade de acesso às vacinas também é importante.

Existem alguns determinantes para a ‘hesitação vacinal’:

  • Confiança: relacionada à credibilidade das pessoas, pais e familiares nos profissionais de saúde, na eficácia e segurança das vacinas;
  • Complacência: é uma baixa percepção do risco das doenças que são preveníveis por vacinas. Isso é decorrente do próprio sucesso de um programa de imunização bem estabelecido. Se ele é bem estruturado e as coberturas vacinais são altas e portanto a população está protegida, chega-se a um momento em que o risco deixa de ser percebido como tal, pois não se “vê” a doença, não se conhece crianças com esta doença e muitas vezes os próprios profissionais de saúde acabam não reforçando a importância de se vacinar contra ela. Na década passada, por exemplo, aconteceu isso com o sarampo no Brasil, pelo fato de termos conseguido uma eliminação do sarampo. Por alguns anos, o vírus deixou de circular nos países da região, e não tínhamos casos da doença, exceto poucos e esporádicos casos de pessoas que se infectavam em outros países de regiões onde o vírus ainda circulava.
  • Conveniência: é a disponibilidade e acessibilidade aos serviços de saúde que oferecem a vacina. Isso é importante porque ela está disponível, mas nem sempre adequada para o usuário. Por exemplo, a mãe trabalha o dia inteiro, vai levar a criança ao postinho quando chega em casa e a unidade está fechada e por aí vai.

Como poderíamos diminuir os efeitos dessa ‘hesitação vacinal’?

Cristiana: É importante reforçar que existem várias estratégias para minimizar isso, porque termos dúvidas é normal, é saudável e todos nós temos. Mas essas questões são normalmente enfrentadas com informação de qualidade, evidências, esclarecimentos e com facilidade de acesso aos serviços de saúde.

Hoje temos muitos mecanismos de checagem e verificação de informações sobre vacinação, principalmente através das mídias digitais – tanto pela OMS quanto pelo Ministério da Saúde e redes colaborativas. Isso ajuda pois podemos saber quais as informações, mídias e sites que contém informações de qualidade e confiáveis. Neste sentido, a rede “confiança nas vacinas” é um ótimo exemplo – envolvendo os países da América Latina.

Como está a situação atual de coberturas e por que isso é preocupante?

Cristiana: No ano de 2022, considerando dados de coberturas vacinais de todos os países do mundo, foi estimado que  22 milhões de pequenos não receberam os imunizantes do esquema básico de vacinação. Depois de um aumento de coberturas globalmente entre a década de 80 e 90, tivemos um período de 20 anos de platô em altas coberturas, mas na última década as coberturas vêm caindo não só no Brasil, mas no mundo inteiro.

Dentre as 4 milhões de mortes anuais que poderiam ser evitadas por vacinas, aproximadamente 1,7 milhão delas são de crianças menores de 5 anos.

No Brasil a situação é alarmante. Muito diferente de outros tempos em que o País era um exemplo mundial na área de vacinação com altas coberturas vacinais e contingente da população protegida, hoje temos ‘bolsões’ de não vacinados muito grande. O Brasil está entre os 10 países com maior número absoluto de crianças não vacinadas contra sarampo e sem receber a pentavalente (difteria, tétano, Haemophilus Influenzae tipo B, hepatite B e coqueluche), que é uma vacina que usamos como um marcador de cobertura para as crianças da primeira infância.

A gente está numa situação bastante delicada e que requer muito cuidado envolvendo a sociedade, os meios de comunicação, os pesquisadores, o programa nacional de imunização, os estados e municípios.

As fake News de saúde atrapalham nesse contexto? Na sua visão, como combatê-las?

Cristiana: As fake news são um problema e, em geral, estão relacionadas ao movimento anti vacina, que é diferente da ‘hesitação vacinal’.  As notícias falsas estão relacionadas a uma disseminação de dados incorretos que é uma ação deliberada. Isso é feito com uma intenção clara de fazer com que as pessoas não confiem e não se vacinem. É até difícil de acreditar, mas vários estudos foram feitos, inclusive no Brasil, mostrando que estas ações envolvem grupos organizados e financiamento. As fake News têm um impacto muito deletério na saúde da população e requer ações que estão sendo trabalhadas em nível mais ‘macro’, de políticas, de legislação envolvendo os poderes executivo, legislativo e judiciário.

Quais são as doenças que estavam erradicadas e que correm o risco de voltar caso esse cenário da vacinação infantil não melhore?

Cristiana: A gente já teve no mundo o exemplo da varíola que foi erradicada na década de 80 e estamos em processo de erradicação da poliomielite. A gente tem estratégias bem sucedidas de eliminação, ou seja, quando uma doença não existe mais em um continente. Quando a doença é eliminada de todos os continentes, a gente fala que a doença foi erradicada.

Tivemos a eliminação nas américas do sarampo e rubéola. Existe uma situação de risco importante aqui na região da reintrodução de uma doença que muitos de nós não conhecem que é a poliomielite, que foi eliminada das américas, com o último caso em 1991, no Peru. No Brasil, o último caso foi em 1989 e a região foi certificada pela OMS como tendo eliminado a poliomielite. De um tempo para cá, houve uma redução das coberturas vacinais, da qualidade dos indicadores de vigilância, que é o monitoramento dos casos suspeitos com sintomas semelhantes que precisam ser descartados como possíveis casos de pólio. Mas o Brasil é hoje o segundo país de maior risco na região das Américas para a reintrodução da doença.

O sarampo é a mesma coisa: foi eliminado em 2016 no Brasil, quando recebeu o certificado internacional. Em 2018, o vírus foi reintroduzido e perdemos o certificado. E temos hoje em dia a circulação importante do vírus e muitos casos e surtos de sarampo. É um retrocesso muito grande. São doenças que causam alta morbidade e mortalidade, redução da qualidade de vida e que têm um impacto grande em populações mais suscetíveis, principalmente pessoas e crianças com doenças crônicas e imunodeprimidos. Reforço aqui a importância da vacinação, de informações de confiança e que sejam verificadas.

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