“Não são as novas terapias que vão quebrar o SUS. É a má gestão”, diz presidente da Febrararas

Antoine Daher, presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras, fala sobre os desafios para garantir acesso a tratamentos e as preocupações com o novo entendimento em torno do rol taxativo

Por Maurício Brum

O acesso a tratamentos inovadores é um desafio para pacientes com doenças raras. E com o novo entendimento em torno do rol taxativo de procedimentos da saúde da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o debate em torno da busca por via judicial se reavivou, o que gera incerteza não apenas em quem depende de liminares para garantir que os planos ofereçam novas tecnologias, mas também quanto às futuras incorporações ao próprio SUS. Para Antoine Daher, presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas) e fundador-presidente da Casa Hunter, o momento é de preocupação e exige esforço redobrado de associações, pacientes e familiares para garantir o direito à saúde previsto na Constituição.

Daher atua há uma década no advocacy em torno das doenças raras. O filho do empresário, Anthony, tinha 3 anos quando foi diagnosticado com mucopolissacaridose (MPS) tipo II, também conhecida como Síndrome de Hunter, uma doença que teve apenas cerca de 500 casos diagnosticados no Brasil desde 1982 e que pode levar a problemas articulares, auditivos, respiratórios, cardíacos e no sistema nervoso. 

Enquanto lutava para trazer para o país os testes de um novo tratamento desenvolvido no Japão, Daher fundou a Casa Hunter e passou a atuar cada vez mais na área. A Redação AME/CDD ouviu Daher sobre os desafios enfrentados por quem convive com doenças raras, o que está em jogo na Judiciário e as perspectivas para o futuro do acesso a tratamentos no Brasil.

Antoine Daher é presidente da Febrararas.

AME/CDD: Como é hoje o acesso a tratamentos para doenças raras no Brasil? Até que ponto é possível obtê-los através do SUS ou de planos de saúde?

Antoine Daher: Até 2017, a gente tinha somente um medicamento para doenças raras incorporado no sistema de saúde. Depois tivemos avanços muito importantes graças à contribuição da sociedade civil. 

Graças ao processo que garantiu um pouco de democratização na participação na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), tivemos a incorporação de vários tratamentos para doenças raras. Hoje são em torno de 15 medicamentos incorporados no SUS que atendem esses pacientes. Claro que não é o suficiente, mas é um avanço razoável. 

Falta muita coisa para falarmos que temos um acesso realmente democrático: não apenas a um tratamento medicamentoso, mas acesso a um diagnóstico precoce, a uma equipe multidisciplinar, que consegue orientar a tempo a família e o paciente sobre como é feito o manejo dessas doenças para alcançar um prognóstico melhor. 

Hoje, muitos pacientes ainda correm para a Justiça para adquirir acesso, e sabemos que a via judicial é a única via que sobra para eles. Mas não é o caminho que vai resolver o problema dos pacientes e do SUS. A judicialização bagunça as coisas públicas e não é a garantia total para esses pacientes receberem o tratamento. Infelizmente, em último caso, quando a demanda é legítima e correta, o paciente somente tem a Justiça para apelar pelo único tratamento que tem à disposição.

Em que momento entra em cena a judicialização para obter acesso a esses tratamentos?

O paciente primeiro deve verificar se aquele tratamento é incorporado ou não no SUS. Se não, mas se há medicamento para a doença dele e está registrado na Anvisa, deve-se antes fazer o pedido por via administrativa, seja para a Secretaria de Saúde do local onde reside, seja para o Ministério da Saúde. Quando o medicamento não é incorporado, ele vai ter o pedido negado por essas instâncias. 

Então ele corre para a Justiça: se tem convênio, entra na Justiça contra o convênio para ter acesso. Se não tem, entra com pedido contra uma instância federal ou estadual. Isso cresceu muito durante os últimos anos, especialmente até 2017, enquanto realmente não houve incorporação. 

Os medicamentos para doenças raras começaram a entrar no país após 2003,quando começou a ter um número mais significativo de tratamentos. Infelizmente, em paralelo não estava ocorrendo a incorporação, e isso aumentou a demanda judicial. De 2005 a 2017 praticamente era a única via de acesso para 99% dos pacientes com doenças raras. Hoje, graças a algumas incorporações, existe acesso via SUS, mas também permanece o acesso pela via judicial. 

Lembrando que muitos pacientes recorrem à Justiça porque já existe medicamento incorporado, mas ainda não tem acesso a ele porque o SUS não o está oferecendo por algum motivo. Quando ele não está disponibilizado mesmo após a incorporação, o que é uma contradição em termos, o paciente acaba recorrendo também à Justiça para ter acesso. 

Estamos falando de doenças raras que, em geral, são incapacitantes, multissistêmicas, degenerativas, progressivas. No caso das doenças genéticas, 30% morrem antes dos 5 anos de idade. O tempo é crucial, esses pacientes não podem esperar a boa vontade do SUS, ficar esperando anos para receber um medicamento. É um paciente que precisa de uma ação mais rápida.

Qual o papel de ONGs e associações de pacientes nesse cenário?

Nosso papel é pressionar para fazer pela via legítima: trabalhar com a comissão de incorporação para poder incorporar esses medicamentos. Mas, ao mesmo tempo, temos que relatar o cenário real para os pacientes e seus familiares. Demonstramos o que eles têm de direito no país, acompanhamos e ajudamos se eles precisarem de atendimento multidisciplinar e orientação do médico. E sempre indicamos a Defensoria Pública para quem não tem condições de arcar com um advogado particular, caso seu medicamento não esteja no SUS.

Se esse defensor precisa de orientação sobre a doença, nós também nos colocamos à disposição para ajudar a entender a doença. Não é esse caminho que nós gostaríamos, mas o paciente não pode morrer esperando essa chance de sobreviver. Se tem um medicamento que pode barrar o avanço da doença, até curar milhares de pacientes, como vou deixar esse paciente fora desse tratamento? 

É uma situação complicada. Infelizmente, temos uma má gestão, a não modernização do SUS, o inchaço do sistema. E mesmo assim querem dizer que são as terapias avançadas que vão quebrar o SUS. Não são. O que quebra o SUS é a má gestão. 

A própria OMS fez um estudo sobre o SUS e relatou que 30% do dinheiro investido vai para o ralo por causa da má gestão. Não falta dinheiro no SUS: falta gestão, falta uma visão de como vamos avançar nos próximos cinco anos, como a gente chega na era da medicina de precisão de uma forma sustentável.

Um debate que costuma voltar à mídia de tempos em tempos gira em torno dos altos custos de medicamentos para determinadas doenças raras, sob o argumento de que, para beneficiar poucas pessoas, estariam sendo retirados recursos importantes para a saúde “da maioria”. Por outro lado, há quem argumente que isso é um falso dilema, e haveria condições de atender a todos com políticas públicas adequadas. Sendo parte dessa luta, como você vê essa discussão?

Quando você toca nesse assunto, a primeira coisa que se escuta é “precisamos de mais financiamento”. Mas não há rio que abasteça uma torneira aberta à vontade. 

Se não formos enfrentar essa nova era da medicina de forma planejada e qualificada, com gestão, com visão do que precisamos para o futuro, com parcerias público-privadas, com incentivos para aquilo que dá certo, infelizmente é claro que o SUS vai quebrar. Mas com o comodismo público, que vai contra qualquer inovação em saúde, vou ter problemas sérios. 

Não são as terapias avançadas que vão quebrar o SUS, é o não planejamento de médio a longo prazo. Se hoje não planejo quais serão minhas ações daqui a cinco, 10 ou 15 anos, quando chegar lá, eu vou estar sem dinheiro. 

O desenho desse sistema não atende mais às necessidades presentes ou futuras. Claro que não existe um desenho perfeito, mas se não tiver um desenho melhor e mais qualificado, com uma gestão bem feita, se ficar como é hoje, nem se injetar metade do PIB vai dar certo. 

Com boa gestão, com o mesmo orçamento de hoje, dá para garantir ainda alguns anos para a frente. Mas com um novo desenho, trabalhando de forma qualificada e eficiente, vai se saber qual será a necessidade de financiamento. Porque o Brasil realmente é dos que menos investem em saúde em porcentagem do PIB. 

Temos que investir em patentes brasileiras, em parcerias público-privadas, mas não aquelas que a gente vê que foram feitas só para roubar. Num país que tem mais de R$ 5 bilhões só de fundo partidário, como vou dizer que doenças raras vão quebrar o SUS? Se foram gastos só R$ 1,6 bilhão em doenças raras em cada ano? Isso é absurdo. Acredito que falta uma boa gestão e vergonha na cara.

Para quem convive com doenças raras e precisa recorrer à Justiça para obter o tratamento, o que pode mudar com o novo entendimento em torno do rol taxativo?

É um absurdo o que está acontecendo. Está sendo feito um lobby grande para limitar o acesso a tratamentos, porque os convênios nadam de braçada no Brasil, e nosso SUS quer seguir o mesmo. Isso precisa mudar. Nós levamos esse assunto ao STF e vamos até o fim.

Você gostaria de acrescentar mais alguma coisa sobre o assunto?

É importante lembrar que o mundo inteiro está vivenciando uma mudança radical na saúde e na medicina em geral. Estamos entrando em uma nova era, de medicina de precisão, por isso precisamos modernizar o SUS. Se não, ninguém vai conseguir atender as necessidades da população para os próximos 10 ou 15 anos. Nossos hospitais serão diferentes, menores. Eles vão tratar doenças pela caracterização delas, de forma mais precisa, no diagnóstico e tratamento. 

Mas em vez de caminharmos para isso, estamos barrando qualquer possibilidade de inovação. Isso é catastrófico para o país. Isso acaba com qualquer evolução que se queira trazer para o país e para o SUS. O que peço é para a gente ter mais visão, abrir a mente e ver aquilo que é melhor para o nosso país. Chega da palhaçada de botar culpa de que as novas terapias vão quebrar o SUS. Nunca um trabalho bem feito que salva a vida das pessoas vai quebrar o SUS. A má gestão quebra o SUS, a indicação política quebra o SUS.

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