Canabidiol: o que a autonomia médica tem a ver com isso

Decisão do CFM de restringir uso de canabidiol – e a suspensão da medida dias depois –, retomou o debate sobre o que é autonomia médica e o seu impacto na vida de pacientes com doenças de difícil tratamento

Bettina Gehm, para a Redação AME/CDD

A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringia a prescrição do canabidiol (CBD) foi suspensa na segunda-feira, 24 de outubro, dez dias depois da sua publicação e após intensas críticas de certas entidades médicas e de especialistas do direito. O texto proibia que os profissionais receitassem quaisquer outros derivados de cannabis além do CBD – esse, por sua vez, só estaria autorizado contra dois tipos de epilepsia. As críticas vieram, principalmente, pelo fato de a normativa ignorar o argumento da autonomia médica, elencado no código de ética do CFM e usado por ele próprio para defender a prescrição de cloroquina no tratamento da covid-19. O debate gerado em torno da restrição trouxe à tona o que significa, afinal, o conceito de autonomia médica e como ela impacta no tratamento de pacientes, especialmente os com doenças raras.

“Foi um contrassenso. Como defenderam a autonomia na prescrição da cloroquina, e agora não, sendo que temos muita indicação da segurança dos canabinoides?”, questiona o psiquiatra Wilson Lessa, que atua como voluntário na Apepi, associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de cannabis medicinal. 

Segundo o médico, a resolução do CFM restringiu também a autonomia dos pacientes. “Hoje, nosso conhecimento não é mais vertical. Estamos dividindo conhecimento com os pacientes. Quando se fala de autonomia médica, se fala de uma conversa honesta com o paciente”, alega. 

De acordo com o psiquiatra, essa autonomia significa decidir junto com o paciente entre os tratamentos já consolidados ou mesmo off-label, desde que com segurança e algum grau de evidência.

A coalizão jurídica Advocacia da Medicina publicou uma carta, assinada por 138 advogados, manifestando apoio a médicos que prescrevem derivados de cannabis e a familiares de pacientes que utilizam esses medicamentos. Os advogados consideraram que a resolução do CFM afrontou princípios constitucionais, como o direito à vida e à integridade física e psíquica. Além disso, ia de encontro à liberdade de expressão, porque  também proibia os médicos de ministrarem cursos e palestras fora do ambiente científico – que é restrito, conforme o próprio CFM, aos congressos organizados por sociedades vinculadas à Associação Médica Brasileira (AMB). 

“Havendo reconhecida eficácia clínica do uso medicinal de CBD e outros derivados da cannabis no tratamento de algumas doenças, a regra de limitação de seu uso pelo CFM afronta o direito de acesso à saúde, estabelecido pelo artigo 6º da Constituição Federal”, afirma Rogério Garcia, advogado que integra a coalizão Advocacia da Medicina. Cabe destacar que esse grupo é formado por advogados com o propósito de debater os temas jurídicos relacionados à cannabis medicinal.

O código de ética médica esclarece que é vedado aos profissionais deixar de cumprir, “salvo por motivo justo”, as normas emanadas dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina. “O trecho ‘salvo por motivo justo’ é o âmago da medicina compassiva”, afirma Lessa, referindo-se à prática médica de prescrever remédios ainda não autorizados por órgãos sanitários – no caso do Brasil, a Anvisa. 

O uso compassivo do CBD havia sido autorizado pelo CFM em 2014 – desde então, a Anvisa já soma 18  produtos da cannabis autorizados no Brasil.

Consulta pública de Canabidiol

Em 20 de outubro, menos de uma semana após publicar a polêmica resolução, o CFM comunicou a reabertura da consulta pública para atualizar a normativa sobre o canabidiol, que ainda está aberta. Serão aceitas contribuições, através de uma plataforma eletrônica, até o dia 23 de dezembro. 

O psiquiatra Wilson Lessa não vê motivos para comemorar: a consulta pública anterior à resolução aconteceu em julho deste ano e, segundo o médico, as contribuições de profissionais experientes não foram levadas em conta. Em 2014, havia sido publicada a última resolução do CFM sobre o canabidiol, bem menos restritiva que a de 2022. 

Lessa enxerga a suspensão da normativa como uma jogada do CFM para evitar o desgaste de capital político do órgão. “A pressão da sociedade civil e de algumas entidades médicas foi grande”, argumenta. 

O advogado Rogério Garcia acredita que o CFM tenha sido surpreendido pela rápida atuação de diversas organizações, dentro e fora da área médica, que entenderam a resolução como um retrocesso. “O episódio tem um viés mais político do que científico, e foi utilizado em um momento peculiar de nossa história, em meio a uma eleição na qual uma pauta anticientífica tem sido utilizada”, pondera. Garcia enxerga uma demonização das drogas ilícitas, não apenas no Brasil, que favorece a tendência de identificar qualquer uso da cannabis como nocivo.

Atualmente, os canabinoides são receitados de forma off-label para enfermidades contra as quais ainda não foram aprovados. “Para prescrever de forma segura, o médico deve se basear em evidências científicas de estudos clínicos sérios”, afirma Nadja Scröder, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que investiga os efeitos do canabidiol. 

A pesquisadora aponta que estudos clínicos comprovam a eficácia do CBD para doenças além dos dois tipos de epilepsia às quais o CFM tentou restringir o tratamento. 

Um relatório de 2017 da Academia Nacional de Ciências, nos Estados Unidos, elenca evidências de que a cannabis medicinal ajuda a tratar, por exemplo, efeitos colaterais da quimioterapia e o aumento involuntário da contração muscular em pacientes com esclerose múltipla. O canabidiol também amenizaria efeitos comportamentais de demências como o Alzheimer.

Um adendo: essa é a principal diferença entre o canabidiol e a prescrição de cloroquina especificamente para covid-19. Enquanto teríamos evidências sérias de benefícios desse composto da cannabis em certas enfermidades, já se sabe que a cloroquina não ajuda no combate ao coronavírus. 

Lessa cita Israel e os Estados Unidos como exemplos de países que criaram órgãos dedicados à pesquisa e à regulamentação dos compostos da maconha como remédio. O Ministério da Saúde de Israel criou, em 2011, uma agência de cannabis medicinal – Israel é um dos países onde a pesquisa mais avançou devido ao protagonismo de Raphael Mechoulam, considerado o pai da cannabis medicinal. Segundo Lessa, o órgão elaborou uma cartilha sobre os tratamentos e aplica uma prova em médicos que pretendem receitar canabinoides. 

Talvez uma prova seja uma solução importante para podermos pensar na construção dessa nova resolução aqui no Brasil”, opina. “Como ainda não se fala de canabinoides nas faculdades de medicina, deveria haver uma forma de o médico demonstrar conhecimento sobre o assunto”, arremata.

No pouco tempo em que vigorou, a resolução do CFM trouxe repercussões. “Alguns médicos abandonaram o tratamento”, afirma Lessa. Juízes também deixaram de lado ações de pessoas em busca de acesso a esses fármacos e planos de saúde se viram autorizados a deixar de pagar por tratamentos com CBD. 

Com a suspensão da normativa, segundo o psiquiatra, deve ocorrer a revisão desses processos. “O Poder Judiciário tem reconhecido cada vez mais que concretizar o direito de acesso à saúde é uma obrigação do Estado”, afirma Garcia. “Em um número crescente de casos, se reconhece a aplicação de tratamentos off-label, desde que sua necessidade esteja devidamente fundamentada pelos profissionais da medicina”, completa.

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