Texto escrito por Letícia Magalhães

Originalmente publicado em Medium

Em geral, não temos noção do quanto somos privilegiadas. Quando nós, pessoas que têm útero, simplesmente abrimos uma gaveta e pegamos um absorvente para nossa menstruação, não pensamos que somos privilegiadas. Não pensamos nas meninas, mulheres e transexuais em situação de rua que não têm com o que absorver o sangue da menstruação. E também não pensamos nas meninas de alguns países que, depois da menarca (primeira menstruação), são obrigadas a deixar a vida escolar que conheciam e a passar para uma existência doméstica, cheia de abusos e opressão.

É a realidade das oprimidas que é mostrada no documentário de curta-metragem ganhador do Oscar “Absorvendo o Tabu” (“Period. End of Sentence”). Filmado em vilas rurais da Índia, o documentário mostra uma realidade triste, mas que de maneira alguma está muito distante de nós.

As meninas têm vergonha de falar sobre menstruação. Uma mulher mais velha diz que “só Deus sabe por que a menstruação acontece. É o sangue ruim saindo da gente”. Outra mulher diz que só sabe “que é por causa da menstruação que os bebês nascem”. Quando perguntados, os homens dizem não saber o que é período menstrual — um deles diz que menstruação “é um tipo de doença”.

Uma mulher diz que menstruou pela primeira vez no Ensino Médio, e a partir daí precisava trocar de roupa várias vezes por dia quando estava menstruada — por não haver absorventes — e os homens ficavam olhando ela se trocar. Por isso, ela abandonou os estudos.

Você pode falar: “ah, mas é na Índia, né?”. Sim, é na Índia, mas por questão de sororidade nos solidarizamos com estas mulheres e vemos a necessidade de mudança. Sim, é na Índia, mas esta já foi a realidade num passado nem tão distante. Minha avó menstruou pela primeira vez no final dos anos 40 e, por falta de informação, achou que tinha se machucado seriamente. Além disso, ela usava paninhos que precisavam ser lavados e reutilizados — como as mulheres indianas ainda fazem. Se o tempo dos paninhos é passado para nós, por que ele não pode ser superado também na Índia onde, segundo o documentário, apenas 10% das mulheres usam absorventes descartáveis? Lembrando que 90% da população feminina na Índia equivalem a quase 600 milhões de pessoas — ou três vezes a população total do Brasil.

Não precisamos sequer nos deslocar muito no tempo ou no espaço para falarmos sobre o tabu que cerca a menstruação. Na minha adolescência, há cerca de dez anos, sempre que surgia o assunto ele era recebido com risadinhas dos meninos e desconforto das meninas. Até minha geração foi ensinada a ter vergonha de falar sobre menstruação — a mesma vergonha que as meninas indianas ainda têm.

E precisamos falar sobre a relação dos homens com a menstruação. No documentário, para poderem operar a máquina de absorventes, as mulheres mentem para os homens dizendo que estão fazendo fraldas. Na hora da demonstração do absorvente produzido, os homens não podem ficar por perto. Tudo bem que um pouco de intimidade é bom, mas achar que menstruação não é assunto de homens prejudica toda a sociedade.

A falta de Educação Sexual nas escolas — ou a falta de atenção a estas aulas — leva os homens a permanecerem ignorantes em assuntos sobre o corpo humano. Não são poucas as declarações que encontramos de homens que acreditam que TPM é frescura, que só mulheres “porcas” menstruam e até que a mulher tem o poder de suprimir a menstruação quando bem entender. Mansplaining sobre menstruação: você já deve ter passado por isso.

Felizmente, o documentário não traz só problemas: ele vem também com a solução. A instalação de uma máquina de absorventes em uma casa mudou completamente a vida das mulheres do vilarejo, gerando renda e tornando as trabalhadoras da minifábrica mais respeitadas, produzindo absorventes eficazes para as mulheres do local, que antes tinham vergonha de comprar absorventes de vendedores homens, e despertou a curiosidade dos homens, que se interessaram pela máquina e por sua utilidade.

A cineasta Rayka Zehtabchi, de origem iraniana, já dirigiu curtas-metragens de ficção, um comercial para a série “O Mundo Sombrio de Sabrina” e um videoclipe. Segundo a produtora Melissa Berton, o documentário começou como uma iniciativa do grupo “Girls Learn International” e com a ONG “The Pad Project” e, segundo Rayka, a oportunidade de se fazer absorventes na vila empoderou as mulheres e pouco a pouco vai normalizando a questão da menstruação. A própria Rayka classificou o documentário como “ativismo em sua melhor forma”.

Um votante da Academia chegou a dizer: “Absorvendo o Tabu — é bem feito, mas é sobre mulheres menstruando, e eu acho que nenhum homem vai votar neste filme porque ele simplesmente é nojento para os homens”. Felizmente, ele estava errado e o documentário de curta-metragem ganhou o Oscar. A declaração do diretor anônimo mostra alguns preconceitos da indústria, sendo o principal deles o de que filmes sobre “problemas femininos” não atraem o público masculino — e, por isso, não são sucesso de bilheteria nem ganham prêmios. Ledo engano, não?

 

Menstruação não é doença nem mistério. Mas, infelizmente, é tabu. Perto do final, uma garota indiana diz: “o mundo não pode avançar sem as mulheres”. E ela está certíssima. Tantas coisas horríveis são normalizadas na nossa sociedade — como a violência que preenche os programas de televisão sensacionalistas — e está mais do que na hora de normalizar a menstruação, dar às mulheres o conhecimento e o controle de seus corpos e aos homens a compreensão do que ocorre com mais da metade das pessoas do mundo todos os meses. Para isso, “Absorvendo o Tabu” é uma ferramenta poderosíssima — e ganhar o Oscar não é o fim de sua jornada, mas apenas o começo da mudança.

 

Confira o trailer:

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